Um 
                conto de Natal
                (por Eurico de Andrade)
                 
              
                A 
                mulher ia, estrada a fora, no carrão importado. Asfalto novinho 
                e pretinho. Chovia. De repente o estouro e o desequilíbrio do 
                carro que sai catando cascalho da beira do barranco. Bate aqui, 
                bate ali, até que pára, depois de entrar por uma estrada esburacada, 
                de chão.
              Depois do susto, a mulher chora. Nervosa 
                e trêmula, desce e vai ver o estrago. Um amassado aqui, outro 
                ali, nada muito grave, a não ser o pneu estourado. Olha para baixo, 
                olha para cima da estradinha. Ninguém aparece. Noite chegando. 
                Bem que tenta trocar o pneu, mesmo tomando chuva. Força pouca. 
                Traquejo nenhum. Desiste. O desespero toma conta dela, que entra 
                no carro e se entrega ao pranto chorando mágoas passadas. Aí, 
                lá da baixada, aparece o vulto. Um homem a cavalo. Vem chegando 
                e vê que algo estranho acontecera com o carro. Pára. Desce calmamente 
                do cavalo e bate no vidro. A mulher, remoendo medo e esperança, 
                encara o homem. Alto, moreno, barba por fazer, roupa suja, mãos 
                cheias de vincos provocados pelos calos... ela abre apenas uma 
                fresta no vidro.
              - Pode abri, moça! Carece tê medo não! 
                A senhora qué ajuda?
              A mulher abanou a cabeça dizendo que 
                sim.
              - Ondé que fica o pneu?
              Ela fez sinal que era lá atrás, no 
                porta-malas, e acionou o botão. O homem pega o pneu, acha chave 
                e macaco e começa a fazer a troca, adivinhando tudo, por não entender 
                nada. Homem acostumado com cavalo e roça não entende muito dessas 
                máquinas não. Foi por isso que o macaco, mal colocado, escapou, 
                sujigando a mão esquerda dele contra uma pedra, fazendo-a sangrar. 
                A mulher teve dó e, pesarosa, abriu a porta.
              - Tome aqui um lenço de papel! Limpe 
                o sangue da mão!
              - Não, moça! Podexá!
              E passou a mão na calça suja, limpando-a 
                do sangue teimoso, dispensando o lenço de papel cor-de-rosa.
              - Moça! Pode entrá no carro! Fica aqui 
                não! Tá choveno e tá frio! Lá dentro tá quentinho! Vai pra lá!...
              Foi aí que ela observou que o homem 
                estava todo ensopado pela chuva e, conseqüentemente, tremia de 
                frio. Ela entra no carro, abre um pouco mais o vidro e começa 
                a procurar assunto.
              - Como é seu nome?
              - É Tarcísio, moça!
              - O senhor mora onde?
              - É bem perto onde moro, meia légua 
                daqui!
              A mulher ficou sem saber se era longe 
                ou perto. Observou o tempo, cada vez mais escuro. Noite chegando 
                e a fome também.
              - Sou da capital, senhor Tarcísio! 
                Resolvi viajar sozinha. Nunca tinha feito isso. Meu marido deixei 
                lá... nós brigamos...
                  A mulher parou de falar. Tomada 
                repentinamente pela emoção, os soluços tomaram-lhe as palavras. 
                Vez por outra ela se acalmava, sua dor doía menos e continuava 
                o seu desabafo. Parece que precisava contar para alguém a sua 
                história. Foi assim que Tarcísio ficou sabendo que o marido tinha 
                muito dinheiro e muitas posses. E Tarcísio viu que ele tinha também 
                uma mulher muito bonita. E ficou sabendo que não eram felizes. 
                O marido vivia mais fora de casa do que dentro, envolvido com 
                negócios, com os amigos e com as amantes. E foram as amantes o 
                principal motivo da briga, desta vez. Tarcísio só ouvia, até que 
                terminou de trocar o pneu. A mulher convidou-o para entrar no 
                carro. Queria conversar mais.
              - Não, moça, posso não! Tô sujo e intanguido 
                de frio. Tenho que ir embora. A noite já chego e minha mulher 
                me espera!...
              - Sua mulher, senhor Tarcísio? O senhor 
                é casado?
              - Sim, moça! E muito bem casado, com 
                a graça de Deus! E óia só como é o mundo. Enquanto a senhora foge 
                do seu marido eu vô pra junto da minha mulher... tem duas semanas 
                que a gente tá longe um do outro... tô morrendo de saudades!... 
                Eu tava trabalhando...
              - O senhor faz o quê, senhor Tarcísio?
              - Trabaio na roça, moça! Planto arroz, 
                milho e feijão. No meio planto abóbora, quiabo, melancia... na 
                beirada planto batata doce, inhame e mandioca... dá pra despesa!...
              A mulher entendeu que Tarcísio tinha 
                pressa. Queria ir ver sua amada. Era noite de Natal.
              - Por que o senhor não deixa seu cavalo 
                aí e vem comigo? Levo-o onde o senhor quiser!
              - Não, moça! Depois do Natal, vorto 
                pra a roça. E é nesse cavalinho que eu vou. Se ele ficá aqui, 
                arrisco perdê o bichim...
              - Senhor Tarcísio, quero pagar pelo 
                que o senhor me fez. Quanto lhe devo?
              - Quanto deve? Nada não, moça! Não 
                fiz isso por dinheiro!
              - Mas, senhor Tarcísio, empatei mais 
                de uma hora da sua vida! Se não fosse o senhor, eu estaria aqui, 
                correndo risco de vida... além do mais, o senhor até machucou 
                a mão! Pode dizer o preço que eu pago!
              - Não, moça! A senhora não tem que 
                pagá nada! A gente, quando faz o bem, não deve pedir nada em troca. 
                Só deve querer que o bem continue sendo feito, sem parar! É assim 
                que penso, moça!
              A mulher tirou cinco notas de cem reais 
                e ia entregá-las ao Tarcísio. Ele já tinha montado no cavalo.
              - Óia, moça! Faz o seguinte: se eu 
                lhe fiz bem e a senhora gostô, passe o bem para a frente! Faça 
                outra pessoa feliz!
              E tocou o cavalo, sumindo noite a dentro. 
                Os olhos da mulher voltaram a ficar cheios de lágrimas. Não mais 
                de tristeza. De emoção. Ela descobriu, ali naquele canto de mundo, 
                vinda de um matuto sem estudos, de quem tivera medo no início, 
                a maior lição de vida. Passar o bem para a frente...
              - Ah, se todo mundo fizesse assim!...
              E ligou o carro. Entrou no asfalto, 
                disposta a achar um lugar onde comer alguma coisa. Rodou pouco 
                e encontrou uma lanchonete de beira de estrada. Entrou e foi para 
                uma mesa, com um monte de olhos de machos presos nela. Mulher 
                tão distinta e tão bonita num lugar desses!... Uma garçonete veio 
                atendê-la. Ela pensou: o que haverá de menos sujo por aqui? Um 
                refrigerante talvez. E para comer? Uma fruta, decerto...
              - Quero um guaraná! Que fruta vocês 
                têm?
              - Fruta? É...
              - Sim, fruta! Já é tarde para comer 
                outra coisa. Prefiro fruta!
              - Olha, moça, aqui não tem fruta. Se 
                a senhora esperar um pouquinho, tenho umas bananas. Moro bem ali, 
                no fundo da lanchonete...
              - Isto! Isto mesmo que eu quero! Você 
                busca para mim? Bananas com guaraná!...
              A garçonete esboçou um sorriso simpático 
                e foi atrás do pedido. Trouxe o guaraná e saiu para buscar as 
                bananas. Aí foi que a mulher viu que a mocinha tinha certa dificuldade 
                para andar. Andava devagar. Observou bem e descobriu o motivo. 
                Gravidez. A garçonete deveria estar lá pelo oitavo mês de gravidez. 
                Usava um vestido simples, coberto por um avental que disfarçava 
                o tamanho da barriga. No rosto, um sorriso meigo e cativante era 
                gentilmente distribuído a todos os que lhe dirigiam a palavra.
              A mulher ficou comovida observando 
                a garçonete, cansada e grávida, naquela noite de Natal, atendendo 
                com um sorriso a quantos lhe procuravam. Pensou que dificuldade 
                teria na vida essa pobre moça para ter que se submeter, já no 
                final da gravidez, a um trabalho desses. Perdeu até a fome.
              Quando a garçonete voltou, encontrou 
                na mesa, debaixo do copo, ainda com um resto de guaraná, cinco 
                notas de cem reais. E um bilhete, num lenço de papel cor-de-rosa: 
                “Obrigada pelo atendimento. Fique com esse dinheiro. É uma ajuda 
                para o seu bebê que está chegando. Seja feliz e faça outras pessoas 
                felizes. Passe a felicidade para frente!”
              A platéia que, atenta, observava o 
                que acontecia naquela mesa, saiu do suspense quando a moça abriu-se 
                num sorriso largo. E, aos poucos, cada um foi procurando seu canto, 
                sempre recebendo da futura mãe uma boa noite e um feliz Natal.
              A garçonete faz mentalmente inúmeros 
                planos do que fazer com aquele dinheiro chegado em tão boa hora, 
                quando mais necessitava, estando o filho por nascer. Enquanto 
                isso, começa a cuidar dos tantos copos e pratos  
                e talheres que ainda tem para recolher e lavar e enxugar... 
                mas para completar seu presente, o patrão também assumira o espírito 
                natalino.
              -    Deixe o trabalho para amanhã. 
                Vá dormir. Feliz Natal!
              O quarto da moça era nos fundos da 
                lanchonete. Ela sai feliz, sorrindo, sentindo-se leve, embora 
                com tanto peso na barriga. Abre a porta devagarzinho, para não 
                fazer barulho. Toma um banho e vai para a cama, pensando no dinheiro 
                e no bilhete que a mulher deixara. Aquela mulher tivera uma inspiração 
                divina para saber o quanto ela e o marido precisavam daquele dinheiro. 
                Com os raios da luz que entra pela janela, olha embevecida para 
                o rosto do marido. Moreno, barba por fazer. A mão esquerda, fora 
                do cobertor, com um ferimento recente.
              A garçonete beija-o docemente e diz, 
                num sussurro:
              -  Tudo vai ficar bem. Obrigada por me fazer 
                feliz, meu amor! Eu te amo, Tarcísio!...
                
                
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