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                hospício não é Deus
                (por Moacyr Scliar)
                
                Apolo era um deus que se poderia 
                chamar de polivalente. Associado com a literatura e as artes era 
                também invocado por aqueles que buscavam a cura de uma doença. 
                Significativa coincidência, esta: existe, sim, relação entre medicina 
                e literatura. Em ambos os casos, a palavra desempenha um papel 
                fundamental.
                
                Na psicoterapia a palavra desempenha um papel fundamental, como 
                instrumento de ajuda psicológica. Na literatura, a palavra, matéria- 
                prima para a criação estética, ajuda a explicar a complexa relação 
                entre seres humanos, incluindo a relação médico-paciente. Doença 
                e medicina são temas preferenciais de grandes escritores, sobretudo 
                a doença mental, como em Cervantes, Nicolai Gogol, Virginia Woolf 
                e Sylvia Plath, entre outros. No Brasil, Machado de Assis. 
                
                São numerosas as referência a problemas mentais na obra machadiana, 
                grande parte dela escrita com "as tintas da melancolia" para usar 
                uma expressão do próprio Machado, que aborda o tema da loucura 
                de maneira mais específica em O Alienista, de 1881. Este conto 
                longo (ou novela curta) tem como cenário a modorrenta cidadezinha 
                de Itaguaí, em "tempos remotos", difíceis de identificar. 
                
                O que provavelmente é proposital; o fim do século 19 viu a ascensão 
                dos alienistas, médicos que tomavam conta dos "alienados". À época 
                não havia qualquer tratamento eficaz para a doença mental; os 
                alienistas limitavam-se a classificar o distúrbio do paciente, 
                e indicavam a internação daqueles considerados perigosos. Este 
                período marcou o auge da instituição asilar - o hospício. O poder 
                dos alienistas era muito grande e Machado certamente não queria 
                brigar com eles; daí a opção pela referência vaga. 
                
                A Itaguaí chega um alienista, o Dr. Simão Bacamarte (o sobrenome 
                é sugestivo), que funda um estabelecimento para alienados. É a 
                Casa Verde, que logo começa a receber hóspedes. A exemplo de outros 
                alienistas, Bacamarte dedica-se a rotular os pacientes conforme 
                as doenças de que são portadores. Mas seu objetivo é descobrir 
                a causa última da enfermidade mental e o "remédio universal" para 
                ela. Difícil empreendimento; o alienista constata que o problema 
                da loucura é muito maior do que pensava: "A loucura, objeto dos 
                meus estudos, era até agora uma ilha perdida no oceano da razão; 
                começo a suspeitar que é um continente". 
                
                De qualquer modo a insânia deve ser combatida: o menor desvio 
                da suposta normalidade é pretexto para uma internação. O alienista 
                detém agora o poder, o que gera uma revolta popular. Bacamarte 
                não se abala: questionado pelos rebeldes, replica, altivo: "Não 
                dou razão dos meus atos de alienista a ninguém, salvo aos mestres 
                e a Deus". Intimidados, os chefes da rebelião vacilam - e aí uma 
                força enviada pelo vice-rei acaba com a revolta.
                
                O poder do alienista chega ao máximo: interna dezenas de pessoas, 
                inclusive a própria esposa. Mas um perturbador raciocínio acaba 
                por lhe ocorrer: se a loucura é tão disseminada o hospício deveria 
                ser reservado não para os enfermos, mas para os sãos - no caso, 
                ele próprio. Tranca-se na Casa Verde, agora vazia, entregando-se 
                ao "estudo e à cura de si mesmo", vindo enfim a morrer. 
                
                O Alienista não discute apenas a doença mental. Machado está nos 
                falando do poder, da arbitrariedade. É o poder que resulta de 
                um suposto conhecimento. Mas este conhecimento, exatamente porque 
                suposto, não dá ao dr. Bacamarte qualquer segurança. Ao contrário, 
                seu estado de espírito oscila entre a onipotência e a impotência, 
                a euforia e o desânimo. Como ele, a psiquiatria à época estava 
                doente.
                
                Esta situação viria a se alterar nas décadas seguintes. Em 1900 
                Freud publica A Interpretação dos Sonhos, mostrando o papel do 
                inconsciente na gênese dos problemas emocionais. Revolução conceitual, 
                sucedida por uma revolução farmacológica: em meados do século 
                20 eram introduzidas drogas para tratar psicoses, depressão, ansiedade. 
                O resultado foi um esvaziamento dos hospícios. A internação hoje 
                obedece a indicações bem definidas e é, freqüentemente, transitória.
                O Hospício é Deus, foi o título que Maura Lopes Cançado deu a 
                um livro de 1965. Não, o hospício não é Deus, como descobriu, 
                para seu desgosto, o dr. Bacamarte. O tratamento da doença mental 
                foi desmistificado, e com isto os alienistas perderam um poder 
                que, de fato, nunca tiveram. O que foi bom para os pacientes e 
                bom para eles também. 
                
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