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                Apocalipse está aí???
                (Por Mark Townsend e Paul Harris 
                em Nova York)
                
                Guerras e desastres 
                causados por mudanças climáticas podem custar milhões de vidas 
                em poucos anos
                Revista CARTA CAPITAL (política, economia e cultura)
                Ano X nº280 03 março 2004 
                
                Um relatório secreto, suprimido pelos chefes da Defesa norte-americana 
                e obtido pelo Observer, adverte que grandes cidades européias 
                ficarão submergidas pelos mares, enquanto a Grã-Bretanha terá 
                um clima "siberiano" até 2020. Conflitos nucleares, grandes secas, 
                fome e tumultos generalizados acontecerão ao redor do mundo.
                O documento prevê que uma mudança abrupta no clima poderia levar 
                o planeta à beira da anarquia, enquanto países desenvolveriam 
                armas nucleares para defender e assegurar alimentos escassos, 
                água e estoques de energia. A ameaça à estabilidade global é muito 
                maior do que a do terrorismo, dizem os poucos os especialistas 
                que conhecem seu conteúdo.
                Rupturas e conflitos serão características endêmicas da vida", 
                deduz a análise do Pentágono. "Mais uma vez, a guerra poderia 
                definir a vida humana".
                As conclusões poderiam ser humilhantes para o governo Bush, que 
                negou repetidas vezes que as mudanças climáticas nem sequer existam. 
                Especialistas dizem que o documento será uma leitura pertubadora 
                para um presidente que insiste na defesa nacional como prioridade. 
                
                O relatório foi pedido por Andrew Marshall, influente conselheiro 
                de Defesa do Pentágono que teve considerável influência sobre 
                o pensamento militar norte-americano nas últimas três décadas. 
                Ele foi o responsável por uma vasta análise que pretendia transformar 
                as Forças Armadas norte-americanas sob o secretário de Defesa, 
                Donald Rumsfeld.
                A mudança climática "deveria ser elevada além do debate científico 
                para uma preocupação de segurança nacional norte-americana", dizem 
                os autores, Peter Schwartz, consultor da CIA e ex-chefe de planejamento 
                do Grupo Royal Dutch/Shell, e por Doug Randall, da Global Business 
                Network, com sede na Califórnia.
                Um cenário de mudanças climáticas catastróficas e iminentes é 
                "plausível e desafiaria a segurança nacional norte-americana de 
                maneira que deveriam ser imediatamente consideradas", concluem 
                os autores. Já no próximo ano, enchentes generalizadas causadas 
                por uma elevação no nível dos mares poderiam ser calamitosas para 
                milhões de pessoas.
                Em 18 de fevereiro o governo Bush havia sido alvo de notícias 
                críticas de uma respeitada organização de cientistas para os quais 
                essa administração escolhe a dedo teses científicas para combinar 
                com sua agenda e suprime os estudos de que não gosta. Jeremy Symons, 
                ex-funcionário e crítico da Agência de Proteção Ambiental (EPA), 
                afirmou que a supressão do relatório por quatro meses é outro 
                exemplo de tentativa da Casa Branca esconder a ameaça da mudança 
                climática.
                Climatologistas mais experientes, no entanto, acreditam que as 
                conclusões do relatório podem forçar Bush a aceitar a mudança 
                do clima como um fenômeno real e presente. Também esperam que 
                o relatório convença os Estados Unidos a assinar tratados globais 
                para reduzir a taxa de mudança climática.
                Um grupo de eminentes cientistas britânicos, recentemente, visitou 
                a Casa Branca para externar seus temores sobre o aquecimento global, 
                parte de uma estratégia para conseguir que os EUA tratem do assunto 
                com seriedade. Fontes disseram ao Observer que funcionários pareciam 
                extremamente melindrados ao ser confrontados com reclamações de 
                que a posição oficial dos EUA parecia cada vez mais alheia à realidade. 
                
                Uma dessas fontes até afirmou que a Casa Branca tinha escrito 
                para reclamar de alguns comentários atribuídos ao professor Sir 
                David King, principal assessor científico de Tony Blair, depois 
                que este classificou a posição de Bush como indefensável.
                Entre os cientistas presentes na Casa Branca estava o professor 
                John Schellnhuber, ex-conselheiro-chefe sobre meio ambiente do 
                governo alemão e líder do principal grupo de cientistas climáticos 
                do Reino Unido no Tyndall Centre for Climate Research. Ele disse 
                que os temores internos do Pentágono poderiam ser decisivos para 
                persuadir Bush a reconhecer a mudança climática.
                Sir John Houghton, antigo diretor do Meteorological Office - e 
                primeira figura eminente a comparar a mudança climática ao terrorismo 
                -, disse: "Se o Pentágono emite esse tipo de mensagem, esse relatório 
                é realmente muito importante".
                Bob Watson, cientista-chefe do Banco Mundial e antigo presidente 
                do Painel Intergovernamental sobre Mudança Climática, acrescentou 
                que os avisos do Pentágono não podem ser mais ignorados.
                "Bush pode ignorar o Pentágono? É difícil ignorar esse tipo de 
                documento, que é profundamente vergonhoso. Afinal, a principal 
                prioridade de Bush é a defesa nacional. O Pentágono não é um grupo 
                liberal ou maluco, em geral é conservador. Se a mudança climática 
                for uma ameaça à segurança nacional e à economia, ele tem de agir. 
                Existem dois grupos que Bush tende a escutar: o lobby petroleiro 
                e o Pentágono", afirmou Watson.
                "De um lado do rio Potomac está um presidente que fala que o aquecimento 
                global é uma fraude e do outro um Pentágono que se prepara para 
                guerras climáticas. É assustador um presidente ignorar seu próprio 
                governo nessa questão", disse Rob Gueterbock, da ONG Greenpeace. 
                
                O planeta já tem uma população maior do que pode sustentar, segundo 
                Randall e Schwartz. Até 2020, faltas catastróficas de água e de 
                energia vão se tornar cada vez mais difíceis de superar e causarão 
                guerras ao redor do mundo. Os autores dizem que, 8.200 anos atrás, 
                condições climáticas trouxeram destruição generalizada de safras, 
                fomes, doenças e migrações em massa, que em breve poderão se repetir. 
                
                Randall disse ao Observer que potenciais ramificações de mudanças 
                climáticas poderiam criar o caos global. "É uma coisa deprimente", 
                garante. "É uma ameaça à segurança nacional que é única, porque 
                não existe um inimigo para apontar nossas armas e não temos controle 
                sobre a ameaça".
                Randall acrescentou que já poderia ser tarde para previnir o desastre. 
                "Não sabemos exatamente em que ponto estamos no processo. Poderia 
                começar amanhã e não saberíamos antes de cinco anos", conta.
                "Para algumas nações, as conseqüências da mudança climática são 
                inacreditáveis. Parece óbvio que vale a pena cortar o uso de combustíveis 
                fósseis".
                Os cenários do relatório são tão dramáticos, segundo Watson, que 
                eles podem ser vitais para as eleições norte-americanas. O candidato 
                democrata líder nas pesquisas, John Kerry, reconhece que a mudança 
                climática é um problema real. Cientistas desiludidos com a posição 
                de Bush ameaçam assegurar que Kerry use o relatório do Pentágono 
                em sua campanha.
                O fato de que Marshall está por trás das descobertas pode ajudar 
                Kerry. Marshall, de 82 anos, é uma lenda do Pentágono que lidera 
                um pouco conhecido think tank dedicado a medir riscos à segurança 
                nacional, chamado Escritório de Avaliação Geral. É chamado de 
                Yoda por conhecedores do Pentágono que respeitam sua vasta experiência 
                e lhe atribuem a iniciativa do departamento sobre a defesa antimísseis.
                Symons, que deixou a EPA em protesto por interferências políticas, 
                disse que a supressão do relatório era outra prova de tentativa 
                da Casa Branca em esconder a questão da mudança climática. "É 
                outro exemplo de como este governo deveria parar de enterrar a 
                cabeça na areia ante esta questão".
                De acordo com Symons a estreita ligação do governo Bush com poderosas 
                companhias petrolíferas e de energia é vital para compreender 
                por que a mudança climática é recebida com ceticismo no Salão 
                Oval. "Essa administração está ignorando a evidência para acalmar 
                um punhado de grandes companhias energéticas e petrolíferas", 
                acrescentou.
                
                Principais conclusões do Pentágono
                
                As guerras futuras serão travadas por sobrevivência e não por 
                religião, ideologia ou honra nacional.
                Até 2007, chuvas torrenciais destruirão barreiras costeiras e 
                tornarão grande parte da Holanda inabitável. Cidades como Haia 
                serão abandonadas. Na Califórnia, barreiras no rio Sacramento 
                serão rompidas, interrompendo o sistema de aquedutos que leva 
                água do norte ao sul. 
                Mortes por guerra e fome chegarão aos milhões até a população 
                do planeta ser reduzida a um nível sustentável.
                Rebeliões e conflitos internos esfacelarão a Índia, a África do 
                Sul e a Indonésia.
                O acesso à água tornar-se-á um campo de batalha. O Nilo, o Danúbio 
                e o Amazonas são mencionados como sendo de alto risco. Uma "redução 
                significativa" na capacidade do planeta sustentar sua população 
                atual ficará evidente nos próximos 20 anos.
                Áreas ricas como os EUA e a Europa transformar-se-iam em "fortalezas 
                virtuais" para impedir a chegada de migrantes provenientes de 
                áreas inundadas pela elevação do nível do mar ou nas quais a agricultura 
                tornou-se inviável. Ondas de barcos de imigrantes tornar-se-ão 
                um problema significativo.
                A proliferação de armas nucleares será inevitável. O Japão, a 
                Coréia do Sul e a Alemanha desenvolverão capacidades nucleares, 
                como também o Irã, o Egito e a Coréia do Norte. Israel, China, 
                Índia e Paquistão inclinar-se-ão a usar suas armas nucleares. 
                
                Até 2010, nos EUA e na Europa, haverá um aumento de 33% nos dias 
                com temperaturas acima de 32°. O clima começará a perturbar a 
                economia à medida que chuvas, secas e ondas de calor tragam o 
                caos à agricultura.
                Mais de 400 milhões de pessoas em regiões subtropicais estarão 
                em grave risco.
                A Europa enfrentará enormes conflitos internos ao lidar com as 
                massas de migrantes que desembarcarão em sua costa. Imigrantes 
                da Escandinávia procurarão climas mais quentes ao sul, e o sul 
                da Europa será invadido por refugiados de países duramente atingidos 
                na África.
                Megassecas afetarão os celeiros do mundo, incluindo o Meio-Oeste 
                norte-americano, onde fortes ventos provocarão erosão do solo. 
                A enorme população chinesa e sua demanda por alimentos fazê-la-ão 
                particularmente vulnerável. Bangladesh tornar-se-á quase inabitável 
                devido à elevação do nível do mar, que contaminará seus suprimentos 
                de água doce.
                
                SILÊNCIO DE ENSURDECER
                A mídia custa a dar voz ao debate científico sobre o aquecimento 
                global.
                Por Antonio Luiz Monteiro Coelho da Costa 
                
                A repercussão internacional da matéria publicada pela revista 
                britânica The Observer, no domingo 22 de fevereiro, embute uma 
                omissão, como notou o escritor e jornalista australiano Tom Engelhardt 
                em seu blog TomDispatch. Mas a forma como isso passou despercebido 
                da maioria dos leitores e comentadores revela um problema quase 
                tão grave quanto o do próprio aquecimento global.
                A matéria não forneceu informações falsas, nem sequer exageradas. 
                Mas dava a entender ser um furo mundial sobre um assunto, até 
                então, mantido em segredo. Não foi bem assim: em 9 de fevereiro, 
                na revista norte-americana Fortune, as mesmas informações, com 
                mais detalhes técnicos, haviam sido publicadas sob o título de 
                Climate Collapse, The Pentagon's Weather Nigthmare (Colapso Climático, 
                o Pesadelo do Pentágono) e reproduzidas por mídias independentes. 
                Você pode lê-la, por exemplo, no site ambientalista http://sierratimes.com/04/02/09/ar_weather.htm 
                ou em http://www.independent-media.tv.
                A falta de atenção para essa primeira matéria - a ponto de poder 
                ter sido relançada duas semanas depois como furo de ressonância 
                mundial - é, por si mesma, uma história muito reveladora sobre 
                os pontos cegos, cada vez mais vastos da imprensa, principalmente, 
                mas não só a norte-americana.
                A maior precisão científica do artigo de David Stipp na Fortune 
                tornava-o até mais assustador que o da Observer para quem o soubesse 
                ler. Que o mundo está a caminho de virar um inferno em razão das 
                mudanças climáticas, há muito tempo deixou de ser novidade, mas 
                se "há poucos anos tais mudanças pareciam ser sinais de possíveis 
                problemas para nossos filhos e netos, hoje anunciam um cataclismo 
                que pode não esperar, convenientemente, que já tenhamos passado 
                à história".
                O estudo do Pentágono trabalhou com a possibilidade bem real de 
                estarmos muito perto de um limiar crítico a partir do qual o clima 
                pode virar repentinamente, em menos de uma década - "como uma 
                canoa que se inclina pouco a pouco até emborcar de repente", escreveu 
                Stipp.
                A hipótese de trabalho - que deve ser entendida como um cenário 
                plausível, não como uma projeção - é que essa virada aconteceria 
                entre 2010 e 2020. Seria resultado do derretimento, já visível, 
                das geleiras do Ártico. A água doce assim libertada, juntamente 
                com a chuva intensificada pelo aquecimento global, vai se misturar 
                à Corrente do Golfo e reduzir sua salinidade e densidade. A corrente, 
                hoje submarina, seria retida na superfície e perderia seu ímpeto. 
                Isso travaria a "correia transportadora" que conduz calor do Caribe 
                para a Europa Ocidental e a torna muito mais habitável do que 
                paragens igualmente setentrionais no Canadá, nos EUA e na Rússia 
                (a latitude da Holanda e das Ilhas Britânicas é comparável à do 
                Labrador canadense e da Kamchatka siberiana). Icebergs chegariam 
                à costa de Portugal e a Europa congelaria. Em 2020, a temperatura 
                média já teria caído 3 graus na maior parte do Hemisfério Norte. 
                Os peixes abandonariam as atuais zonas pesqueiras em busca de 
                águas mais aprazíveis. Na terra ou no mar, espécies incapazes 
                de migrar se extinguiriam (9% a 58% de todas as espécies animais 
                hoje existentes, segundo diferentes hipóteses).
                Ao mesmo tempo, a temperatura do resto do mundo subiria e os padrões 
                de chuvas e secas seriam alterados em várias partes do planeta, 
                provocando estiagens e inundações, difundindo para outras partes 
                doenças, hoje restritas aos trópicos, e agravando os conflitos 
                internacionais, principal razão do interesse do Pentágono no tema. 
                Suas especulações incluem a invasão da Rússia pelo Japão e países 
                da Europa Oriental em busca de energia e recursos naturais, a 
                reunificação das Coréias em uma nova potência capaz de somar a 
                capacidade nuclear do Norte com a tecnológica do Sul e o rompimento 
                pelos EUA do tratado que garante o fluxo do rio Colorado para 
                o México, o que condenaria o país vizinho à desertificação, enquanto 
                seus imigrantes famintos - juntamente com os do Caribe e da América 
                do Sul - seriam impedidos de entrar na reforçada "fortaleza América 
                (do Norte)".
                Stipp sugere que 25% da população masculina dos países pobres 
                pode morrer nesses conflitos. Contou também que a 20th Century 
                Fox lançará em meados do ano um filme de catástrofe mais ou menos 
                baseado nesse roteiro, chamado The Day After Tomorrow, no qual 
                Dennis Quaid interpreta um cientista que salva o mundo (ou o Hemisfério 
                Norte?) dessa idade do gelo, paradoxalmente, causada pelo aquecimento 
                global.
                Mas na Fortune o teor explosivo do assunto parece ter passado 
                despercebido - como se Londres e Haia ficassem em outro planeta. 
                Era "só" um "pior cenário" plausível que o Pentágono gentilmente 
                "concordara em partilhar" com essa revista de economia e negócios 
                e com os estrategistas das transnacionais norte-americanas.
                Neste caso, parece que o meio matou a mensagem. O resto da mídia 
                global não tomou conhecimento até a Observer relançar o assunto 
                e politizá-lo como se deve.
                O silêncio não foi rompido nem na quarta-feira 18, quando 60 cientistas 
                (incluindo 12 premiados com o Nobel, 11 com a National Medal of 
                Science, três com o prestigiado Prêmio Crafoord, dois ex-assessores 
                presidenciais de ciência e vários reitores de universidades e 
                presidentes de institutos de pesquisa) endossaram um relatório 
                da organização liberal União dos Cientistas Engajados (Union of 
                Concerned Scientists - UCS) que acusa Bush de enganar o público 
                ao distorcer a ciência de acordo com sua vontade política, assim 
                como fez com os relatórios da CIA sobre "armas de destruição em 
                massa" do Iraque.
                Trata-se de uma denúncia ampla, que se refere também ao ocultamento 
                pela Casa Branca de evidências levantadas pela Agência de Proteção 
                Ambiental (EPA) sobre poluição por mercúrio perto de termoelétricas 
                e produção de bactérias resistentes a antibióticos pela criação 
                de porcos, a troca de peritos científicos por representantes de 
                empresas e igrejas em órgãos consultivos do governo federal, o 
                apagamento e revisão de trechos de relatórios científicos oficiais, 
                a proibição de divulgar que a ênfase na abstinência sexual por 
                parte dos programas de "educação sexual" de Bush fez subir as 
                estatísticas de gravidez adolescente e a ordem da Casa Branca 
                ao Instituto Nacional do Câncer para este declarar, erradamente, 
                que o aborto provoca câncer de mama.
                Mas a questão mais vital, sem dúvida, era a supressão dos estudos 
                sobre mudança climática e registros de temperatura do relatório 
                anual da EPA divulgado em junho de 2003, também ordenada pela 
                Casa Branca, que os substituiu por um estudo financiado pelo American 
                Petroleum Institute.
                Mesmo jornais que aplaudiram a UCS, como The New York Times, não 
                citaram o estudo do Pentágono. Do outro lado da cerca, os mais 
                imperialistas que o imperador - como o filósofo Olavo de Carvalho, 
                no site Mídia Sem Máscara - tentaram desqualificar o posicionamento 
                da organização sobre o aquecimento global com base em que "as 
                referências a ela, acompanhadas dos respectivos links, são abundantes 
                nos sites de organizações militantes comunistas, socialistas e 
                pró-islâmicas", sem se dar conta de que fontes tão insuspeitas 
                quanto a Fortune e o Pentágono haviam divulgado cenários muito 
                mais alarmantes.
                Ainda mais assustador é que mesmo depois de publicada a denúncia 
                no Reino Unido e amplamente comentada na mídia européia, asiática, 
                árabe, israelense, canadense e brasileira, os principais órgãos 
                da mídia norte-americana continuaram alheios ao assunto. O New 
                York Times dedicou várias matérias ao carnaval brasileiro, mas 
                não se referiu ao relatório do Pentágono. Nem o Washington Post. 
                Já o jornal conservador Washington Times - que na véspera havia 
                ridicularizado o ex-candidato democrata Al Gore por tentar ressuscitar 
                a discussão sobre o Protocolo de Kyoto e fazer dele um tema de 
                campanha - ao menos acusou o golpe ao publicar um texto do filósofo 
                Sterling Burnett, do instituto conservador National Center for 
                Policy Analysis.
                Burnett citou as divergências ainda numerosas entre climatologistas 
                sobre os mecanismos exatos desencadeados pelo aquecimento global 
                para classificar como "ficção científica" a tese da mudança climática, 
                sem se perguntar por que o Pentágono se dá ao trabalho de analisar 
                estratégias reais para enfrentar a tal "ficção".
                É como os artigos patrocinados pela indústria do fumo que, até 
                o início dos anos 90, alegavam que a falta de consenso dos oncologistas 
                em relação aos mecanismos que levam ao câncer desqualificava como 
                científica a tese de que o cigarro o causava, ainda que tivesse 
                sido exaustivamente demonstrada por estatísticas.
                Mais tarde o discurso dessa indústria embarcou na onda do individualismo 
                neoliberal: passou a defender a responsabilidade e a liberdade 
                pessoal de "optar" pelo risco de contrair um câncer. Mas no caso 
                do aquecimento global, não há como optar individualmente, mesmo 
                em tese, por correr ou não o risco de causar uma catástrofe planetária. 
                Aliás, de acordo com o cenário do Pentágono, os países mais pobres 
                e menos responsáveis pelas emissões de gás carbônico serão os 
                primeiros e mais duramente atingidos pela vingança cega da natureza. 
                
                Houve quem, ao constatar a indiferença da sociedade civil ante 
                o aquecimento global e seus efeitos mundialmente catastróficos 
                a longo prazo, lembrasse de certa experiência científica cruel, 
                mas verdadeira. Uma rã colocada em água quente salta imediatamente 
                para fora, mas colocada em uma panela de água fria sobre um fogo 
                que eleve sua temperatura pouco a pouco, a mesma rã nada tranqüilamente 
                até morrer cozida.
                Da mesma forma, a julgar pelas manchetes da imprensa norte-americana, 
                sempre há mais gente disposta a tomar ou exigir providências em 
                relação aos riscos de ser vitimado por um criminoso desconhecido, 
                por um terrorista islâmico, pela queda de um avião, por abelhas 
                africanas e até pelo choque de um asteróide com a Terra do que 
                a fazer o mesmo contra as conseqüências muito mais vastas e certas, 
                mas graduais, de seu próprio consumo irracional e supérfluo de 
                petróleo.
                Agora nos é dito, porém, que essas conseqüências talvez nem sejam 
                tão graduais. Talvez se tornem drásticas, óbvias e praticamente 
                irreversíveis já nesta década, ou na próxima. Mesmo assim, a mesma 
                imprensa que dá capas e manchetes a debates sobre os riscos das 
                gorduras hidrogenadas e dos implantes de silicone continua a tratar 
                essa questão como um debate acadêmico complicado, abstrato e distante. 
                
                Talvez seja mais apropriado atribuir essa relutância a uma propensão 
                a exagerar problemas que, aparentemente podem ser atribuídos a 
                um "outro" a ser punido ou uma natureza a ser domesticada, para 
                melhor ocultar aqueles causados pelo modo de viver, produzir e 
                consumir da mesma sociedade que a própria mídia não se cansa de 
                exaltar e promover.
                Como noticiar - ou simplesmente pensar de dentro do american way 
                of life - que as emanações dos jipes esportivos que encantam as 
                famílias norte-americanas podem ser muito mais úteis aos Quatro 
                Cavaleiros do Apocalipse que todos os terroristas da Al-Qaeda 
                e do Hamas, somados? Que a desregulamentação e o livre mercado, 
                em vez de levar ao melhor dos mundos possíveis, podem nos conduzir 
                ao pior desastre da história?
                Fez fortuna, em outros tempos, o lema "melhor morto do que vermelho 
                (better dead than red)". Agora, parece que mais vale morrer sonhando 
                o american dream do que abrir mão do exagerado padrão de consumo 
                dos EUA: melhor morto do que menos rico.
                Parece mais fácil ser racional na pobre República das Maldivas, 
                tão pequena que seus cidadãos brincam que só é preciso encher 
                os tanques de seus carros uma vez por ano. É formada por pequenos 
                atóis de coral do Oceano Índico (aquele que abriga a capital tem 
                500 hectares), com pouco mais de um metro de altura. As mudanças 
                climáticas já começaram a destruí-los e mesmo uma pequena elevação 
                do nível do mar os inundaria rapidamente. Seu governo tem construído 
                diques e quebra-mares para retardar a destruição dos atóis e, 
                em 1997, começou a construir uma ilha artificial chamada Hulhumale, 
                um pouco mais alta que seu território natural, para abrigar seu 
                povo. É a primeira Arca de Noé do século XXI. Seres humanos não 
                são rãs. Distinguem-se de outros animais, entre outras coisas, 
                pela sua capacidade superior de interpretar indícios, relacionar 
                causas e efeitos e antecipar os resultados de suas ações. Mas 
                também por sua capacidade de mentir até para si mesmos - principalmente 
                quando se trata de políticos e empresários (inclusive de mídia) 
                para os quais o encobrimento da verdade favorece seus interesses 
                mais óbvios e imediatos.
                Isso não diz respeito apenas ao atual governo dos EUA, apesar 
                de seu engajamento a favor dos interesses do setor petrolífero 
                ter obviamente agravado a questão: já no tempo de Clinton os democratas 
                hesitavam em defender abertamente o Protocolo de Kyoto e sua relutância 
                aumentou ainda mais depois dos efusivos cumprimentos da National 
                Association of Manufacturers (a CNI dos EUA) e da Câmara do Comércio 
                a Bush por ter defendido o interesse nacional contra o tratado 
                que limitaria o consumo de combustíveis dos países industrializados. 
                
                Restou nos EUA, porém, uma instância encarregada de pensar o impensável 
                - as Forças Armadas. Como parece improvável que a Casa Branca 
                decida privatizá-las, seus cientistas podem acabar como os únicos 
                autorizados a discutir ecologia sem serem tachados de antiamericanos. 
                
                Mas não nos iludamos: ao tratar do assunto, o Pentágono lembra 
                um certo figurante freqüentemente citado por Luis Fernando Verissimo. 
                Sua participação na peça seria entrar em cena durante uma bacanal, 
                jogar as mãos para o alto, escandalizado, e dizer: "Mas isto é 
                Bizâncio!" O ator entrou em cena na hora certa e disse a fala 
                corretamente. Só que fez isso esfregando as mãos.
                Da mesma forma, é difícil não imaginar os generais a esfregar 
                as mãos ao listar os novos riscos para a segurança nacional e 
                prever a transformação dos EUA em vasta fortaleza protegida por 
                um arsenal ampliado e modernizado que proteja seus recursos de 
                serem consumidos por imigrantes famintos empilhados em precárias 
                jangadas ou pilhados por nações desesperadas, armadas com bombas 
                atômicas.
                A conclusão do relatório do Pentágono, vale notar, é positiva: 
                "Os EUA sobreviverão sem perdas catastróficas", ao contrário da 
                maioria das demais nações do mundo. Se lhes importa mais estar 
                em primeiro lugar do que viver em um mundo razoavelmente habitável, 
                serão os demais que terão de jogar as mãos para o alto, se escandalizar 
                e gritar "Mas isto é Bizâncio!" Sem esfregar as mãos.
                FIM.
                
                
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