Godô 
                recupera precisão de enforcar o ganso
                (por Eurico de Andrade)
                 
              
                Godofredo 
                e Cornélia, depois de longa vida em comum, andavam não mais se 
                suportando. Tudo era motivo para brigas, das mais rancorosas, 
                onde ruminavam o passado, passando de cor e salteado toda a lista 
                de desavenças. Certa feita, bem cedinho, pegaram o velho jeep 
                e tocaram pra fazenda. Godofredo fora bom motorista nos velhos 
                tempos, mas, agora, distraia-se com qualquer coisa e se esquecia 
                até de que estava dirigindo. Dona Cornélia é que gritava a fim 
                de colocar o marido no caminho certo para ele não fazer tanta 
                barbeiragem.
              Naquele dia, enquanto 
                ficaram na fazenda, tiveram tempo de brigar 17 vezes antes do 
                almoço. Num intervalo antes da próxima briga, chega um bando de 
                moças. Sete. Tavam ali por perto, tomando banho de cachoeira e, 
                como sabiam que na fazenda tinha uma máquina de limpar arroz com 
                uma balança, queriam conferir o peso. Assim que chegou aquele 
                mulherio poucaroupa, Godofredo, ouriçado, saltitante e fagueiro, 
                virou mestre de cerimônia. Mansinho, meninou e levou as gurias 
                pra tudo quanto é canto, cascou laranja, mostrou as galinhas, 
                a porcada, o gado nelore, com o touro Tanajura cheirando as coisas 
                da novilha Princesa e matando as moças de vergonha e muito mais. 
                Aí o fazendeiro conquistou intimidades com as meninas e alisava 
                ora o braço de uma, ora o cabelo d'outra, e não tirava os olhos 
                daqueles traseiros salientes, da peitaria quase à mostra, procurando 
                adivinhar outros segredos guardados, vistos há tempos, na distante 
                juventude. Sim, Godofredo fora homem de dar muito trabalho à sua 
                Cornélia nos primeiros anos de casamento, bem diferente de agora, 
                quando olhava para ela e nem tium, não tinha mais inspiração. 
                
              Também Cornélia 
                esquecera da vida. Engordara, sem perfume, sem esmero, sem cuidados 
                e a velhice chegou primeiro que a idade. Era um sol que se apagava. 
                Não tinha mais encantos para Godofredo. Na última briga, de manhã, 
                ele falou inhantes cê era um fogo quisó, muié! Me sirvia no engenho, 
                no paió, no curral, no canaviá e agora não me serve mais... cê 
                pensa que vô dexá de usá minhas faculdades sexuais? Vô não. Ocê 
                só tem chero de aio e desses tempero de cozinha... credo muié! 
                Nem ropa de baixo cê usa mais, parece que gosta de deixá os pobrema 
                à vontade, né? Pois óia, vô caçá um rabo de saia que me sirva... 
                
              Enquanto ele passeava 
                pra baixo e pra cima com as moças, a patroa tava enfurnada dentro 
                de casa, só assuntando, pondo sentido, gungunando com seus botões, 
                de olho no assanhamento do velho que, segundo ela, não dava mais 
                no couro. Mas, como pra cavalo velho, capim novo é um santo remédio, 
                Godofredo, para as meninas, virara Godô e, doido para afogar o 
                ganso em lagoa nova, a todas já tinha, no particular, convidado 
                para aparecerem mais amiúde na fazenda, enquanto pensava ôtas 
                menina mais gostosas que margarina, que derrete a toa... é com 
                uma dessas que eu vô, meu Jesuscristinho!... 
              - Ó, sá, miudinho 
                tô aqui, viu? Vem cá, sá! Vem sozinha procê cunhecê a fazenda 
                mais mió!... Vai sê bão demais da conta, sá! 
              Até que uma das 
                meninas resolveu se lembrar do motivo que as trouxera ali. 
              - É memo, gente! 
                Vamo lá na balança, vamo, meus bem! Vô pesá ocêis! 
              Godofredo, em vista 
                de tanta fartura de mulher, perdera a auto-censura e a noção do 
                ridículo. Dispensou a ajuda do empregado que cuidava da máquina, 
                mandou-o catar gabiroba e coquinho e foi, ele mesmo, conferir 
                a massa de cada uma, tim-tim por tim-tim, todo carinhoso e meloso. 
                
              - Ispia só, fia! 
                Seu peso é 37! Livre!... 
                - O seu é 45, bem! Livre!... 
                - Ih, meu amô! Tá gordinha! 53! Livre!... 
              E, assim, Godô foi 
                conferindo a massa de uma por uma, na maior animação. Todas, segundo 
                ele, livres. E as visitantes, muito boazinhas, oferecendo-se para 
                a alisação do velho que tava quase em ponto de bala, com a arma 
                em meia engorda, enquanto elas, às suas costas, riam a mais não 
                poder.
              - Mas, senhor Godofredo... 
                
                - Tira o senhor, meu amozinho!... Godô! Só Godô, tá?... 
                - Então, Godô, por que você disse “livre” para todas nós? Não 
                entendi!
              Aí o Godofredo, 
                na sua sabedoria roceira, depois de anos e anos na prática de 
                pesar volumes e mais volumes de arroz, milho e feijão, esclareceu: 
                
              - Livre sim, fia! 
                Livre de saco. É peso líquido, já que ocês não têm saco, uai!... 
                
              As meninas riram 
                amarelo e foram despistando, caindo fora, enquanto Godofredo, 
                trepado na porteira do curral, acenava, com os olhos ardentes 
                e merejantes, até a última delas sumir dentro do capão do mato.
              Depois de mais 59 
                brigas com a Cornélia, por causa das inocentes meninas, nosso 
                Godô acha que tá na hora de irem embora, para não dirigir à noite. 
                Bem de tarde, pegam o caminho de casa, chegando à cidade no lusco-fusco 
                da noite. E não é que naquele dia a prefeitura tinha mandado consertar 
                os buracos da rua do Assobio, onde moravam? Como o serviço não 
                estava terminado, o Didico da Prefeitura mandou colocar uma corda 
                de bacalhau para impedir que carros de boi, carroças e mesmo automóveis, 
                passassem naquele pedaço de rua. 
              O Godofredo, com 
                a vista cansada, a rua escura, o farol caolho iluminando pouco, 
                não dá sinal de que ia parar antes da corda. A Cornélia, então, 
                não teve outro jeito e botou a boca no mundo. 
              - Godofredo! A corda! 
                A corda, Godofredo! 
              E ele, distraído, 
                cantando pra si a musiquinha que fizera com a frase "da vida o 
                que se leva é o que se come e que se ama", sorrindo e sonhando 
                com todas as meninas do mundo, cai na dura realidade de ter Cornélia 
                ao seu lado, gritando descontrolada, feito siriema choca. 
              - Quê? Acorda o 
                quê, dona increnca? Quem disse que tô drumino?
              
                
                
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