Fórum 
                Social Mundial - Dignidade, Indignação e Encantamento
                (por Bené Fonteles)
                
                “Coragem grande é poder dizer 
                sim!” - Caetano Veloso
                
                Passada a poeira dos seis dias, deu para avaliar o Fórum Social 
                Mundial como o acontecimento mais importante ocorrido no planeta, 
                neste início de século XXI. Foi grande a emoção ao encontrar mais 
                de 150.000 mil vidas vindas de todos os continentes da Terra com 
                um mesmo sonho: compartilhar experiências para um Mundo mais solidário 
                na economia, na política, na arte e na filosofia. Todos por uma 
                ciência com consciência e uma espiritualidade fundamentada mais 
                na ética do que na crença.
                
                Por isso, faltou tato político, cultural e espiritual aos organizadores 
                de FSM quando falharam ao não convidar os governantes de Porto 
                Alegre e do Rio Grande do Sul, que autorizaram a ocupação de espaços 
                da cidade, ou, a sair dos erários públicos, o dinheiro que financiou 
                grande parte do Fórum. Falou-se muito, entre os gaúchos, da falta 
                de elegância, distanciamento político e generosidade dos que gerem 
                um evento feito para democraticamente para todos, inclusive os 
                governos eleitos legitimamente pelo povo.
                
                O aprendizado com estas lições, e as vivências, tão diversas, 
                advindas de tantos povos, foi o tom deste encontro multicultural 
                e o dom de sua pluralidade. Nele, a “beleza do compromisso” com 
                a vida – como dizia Gandhi -, e o respeito as diferenças étnicas, 
                criou uma celebração rara para ampliar espaços de consciência 
                e cidadania.
                
                Nos “Diálogos de Rua” promovidos pela “Aliança por um Mundo Responsável 
                Plural e Solidário”, e organizados pela Rede Mundial de Artistas 
                em Aliança, que aconteceram num pequeno palco sonorizado às margens 
                do exuberante Guaíba, tivemos a participação espontânea de transeuntes, 
                que desejavam comunicar criativamente suas unicidades e diferenças, 
                mais do que comungar a igualdade de ideais ou de princípios.
                
                O começo do século XXI anuncia uma nova fraternidade não mas de 
                “eleitos”, e sim de seres humanos com anseios plurais e identificados 
                com uma liberdade transcendente a qualquer realidade, seja nos 
                becos estreitos de Sowetto ou nas ruas largas de Manhattan. 
                
                Sim, era de uma beleza e de harmonia ímpar saber nestas rodas 
                de conversa, tão fora de hábito nas capitais, mas tão comuns na 
                cultura do interior brasileiro - que haviam pessoas muito interessadas 
                em narrativas sobre árvores e de suas importâncias no ciclo da 
                vida pessoal; das tradições e sabedorias indígenas contadas por 
                nativos e artistas; de arte solidária com a vida, em exercícios 
                criativos de cidadania, encantamentos e alumbramentos poéticos 
                com o Mundo. 
                
                Além da luta pelos direitos civis, tão justas e necessárias, havia 
                a fome do essencial pela beleza, a compaixão e a amorosidade das 
                trocas. Os “Diálogos de Rua” animados pelo inspirado poeta Hamilton 
                Faria, abriam espaços largos e circulares para se falar sem medos 
                de si, do outro e do compromisso cidadão que fundamenta mundos: 
                perdoar sem culpas a si, para poder perdoar o outro. 
                
                Sim, ali no Fórum havia um lugar não só para as utopias, mas, 
                também, para se reconhecer e dialogar com o outro, que é você 
                mesmo num espelho sem Narciso. Era o ágora - como a dos gregos 
                -, no agora, um espaço filosófico para se saber o sentido real 
                da saudação dos povos maias: “I’Lakeche” – “Eu sou o outro você”, 
                ou, a dos hindus: “Namastê” – “A divindade que habita em mim saúda 
                a divindade que habita em você”, ou ainda, a dos nossos indígenas 
                kaxinauá: “Txai” – “Metade de mim em você e metade de você em 
                mim”. 
                
                Aliás, “Txai” era também a moeda oficial de troca do 5º FSM, - 
                cujo o mote da economia solidária estava em ampla discussão nos 
                vários espaços temáticos, geridos pelas Ong’s com apoio ministerial 
                e sindical. “Txai” propõe que o escambo possa ser uma nova forma 
                de transmutar o consumismo voraz, transformar o capitalismo veloz, 
                transcender o comunismo e o socialismo ainda venal em algo mais 
                humano, real e respeitoso com os recursos naturais da Terra.
                
                Renovação de linguagem:
                
                Os jovens no 5º Acampamento Intercontinental da Juventude, no 
                Parque Harmonia, engajados no tema “Fazer outro Mundo”, decidiram 
                não circular em seus espaços, bebidas fabricadas por grandes corporações 
                mundiais, preferindo sucos tropicais. Além de uma mudança de hábitos 
                e vícios, essa atitude propunha uma coerência ética contra a indústria 
                que financia trustes e guerras. A ética pessoal desses jovens 
                avizinha-se de um novo paradigma, também antenado com o cuidado 
                básico pela saúde. Embora, a maconha fosse fumada livremente dentro 
                do acampamento, lá fora, qualquer pobre coitado era preso e atuado. 
                O não saber o lugar certo onde colocar o lixo, era outra das incoerências 
                cometidas pelos adolescentes que em sua maioria exercitavam a 
                cidadania num fórum pela primeira vez. 
                
                De qualquer forma, o Acampamento Intercontinental dava lugar ao 
                viço da solidariedade e soluções de convivência pacífica entre 
                tantas tribos tatuadas de esperança. Todas as artes de ser no 
                Mundo ali eram contempladas e celebradas. 
                
                Milton Nascimento – que pena, nunca foi a nenhum dos Fóruns -, 
                poderia ter cantado com toda coerência uma canção de letra modificada 
                para a propícia ocasião: “A tribo toda reunida, Nações não mais 
                divididas ao sol”. 
                
                Em nossa Vera Cruz gaúcha o calor era de rachar, mesmo sendo um 
                ponto geográfico do país tão próximo da Antártica. Eram mais de 
                35 graus de um verão com a umidade de um Guaíba sujo, contudo 
                ainda tão vasto e tão belo. Nele naveguei e o vi dividido em ilhas 
                de pescadores pobres e de privilegiados burgueses. Mas, do ponto 
                de vista de uma geopolítica ampla e inclusiva, estávamos nós, 
                mais do que agraciados pela gauchada boa, que nos recebeu de maneira 
                tão generosa e sempre sábia. 
                
                Sim, fiquei encantado pela generosidade de uma Porto Alegre acolhedora, 
                não só pela oportuna entrada de R$ 60 milhões no mercado deixados 
                pelos “turistas revolucionários”, mas também pelo fato da cidade 
                respirar cidadania, renovação de sua linguagem cultural como urbe, 
                urdindo espaços intimistas para colher e ampliar um novo projeto 
                articulador de civilidade. 
                
                Havia também a força da tradição hospedeira dos pampas e de uma 
                cultura popular à beira de receber uma das festas de maior querência: 
                as ruas estavam inundadas de pontos de venda repletos de barquinhos 
                azuis, feitos dos mais diversos materiais, que esperavam receber 
                as oferendas para a Senhora dos Navegantes ou para Iemanjá. Iria 
                acontecer no 2 de fevereiro uma festa sincrética, igual a da cidade 
                do São Salvador, levando milhares de fiéis das ruas para o mar. 
                Do Rio Vermelho, a praia, ou o Guaíba, o estuário, baianos e gaúchos 
                chegam para saudar a deusa ou o espírito das águas. Era o fórum 
                espiritual local, em que o povo cantaria e dançaria sua aldeia, 
                para se sentirem mais universais, em reverência milenar ao mito 
                da Deusa Mãe. 
                
                Sim, no Fórum como na festa, todos se encontravam com a memória 
                do prazer e do fazer artesanal com o político e com o espiritual. 
                Atitudes de fusão que devem contar sempre, na prática da cidadania 
                consciente junto com a reflexão e o questionamento das coisas 
                deste mundo.
                
                Apontando outros caminhos:
                
                Na Caminhada pela Paz - que reuniu mais de 100 mil cidadãos planetários 
                -, e por um Mundo mais consciente de suas responsabilidades eletivas, 
                nós, de diferentes tribos e facções éramos os artistas utópicos 
                sempre prontos a refazer a Terra da perspectiva de um lugar mais 
                digno do humano. Por isso, carecemos de uma paisagem mais criativa, 
                ecológica e ambiciosa. Querendo por isso, um outro mundo impossível 
                e passível de uma dignidade exuberante, de um respeito extraordinário 
                pela diferença nesta vida ordinária que a realidade rasa nos impõe. 
                
                
                Sim, queremos muito, pois como canta Caetano, “Muito é muito pouco”. 
                Por sinal, outros artistas de extrema importância no país, nunca 
                deram as caras no Fórum. A ausência destes artistas é sentida, 
                porque suas presenças solidárias referendariam as propostas de 
                cidadania compartilhada que o FSM espera de todas as esferas da 
                sociedade. Gilberto Gil tanto na Índia como em Porto Alegre, arrasou 
                como ministro propondo subversão digital, e como artista, cantando 
                e emocionando os mais de 100 mil que vinham do caminhar pela paz. 
                Aliás, o tom destoante desta caminhada foi que mais uma vez, os 
                participantes, não souberam o que fazer com o lixo, deixando um 
                rastro infeliz de incoerência e sujeira.
                
                Sim, fiquei dignificado como cidadão ao ver do portão do mercado 
                público, centenas de judeus vindos de vários países, com bandeiras 
                do estado de Israel, faixas e camisetas azuis pedindo pelos dois 
                estados, o israelita e o palestino - a ser criado -, unidos e 
                em paz. Todos foram se juntar como rio ao mar na caminhada que 
                deixou este ano de ter o nome de marcha para se tornar também 
                semanticamente mais pacífica.
                
                Sim, fiquei encantado pelos editoriais do melhor jornal local, 
                o Zero Hora. Um destes inspirados textos, de nome “Semeadura de 
                utopias” dizia: “É a diversidade que estimula a compreensão das 
                diferenças e até o aprendizado para o espanto”. E terminando, 
                o editorialista nos espanta ao afirmar: “Todos os fóruns terão 
                algum sentido prático se Sharon em Davos ou os adolescentes acampados 
                em Porto Alegre sensibilizarem o Mundo para o direito humano fundamental 
                de continuar sonhando”.
                
                Sim, graças aos novos deuses internautas e também aos velhos analfabetos 
                digitais, felizmente, John Lennon não tinha razão, pois o sonho 
                apenas está começando. Ele, o sonho, prossegue um imaginário coletivo 
                milenar de criar realidades paralelas. E, junto com a arte tem 
                cada vez mais responsabilidades de compartilhar seus exercícios 
                de liberdade e transformação para ampliar os campos de consciência. 
                
                
                Por causa da arte - que está mais perto do eterno e pela causa 
                da vida - que está mais junto da impermanência -, descobrimos 
                que a Terra é uma ótima escola para aprender sobre o efêmero. 
                Como o planeta nosso corpo também entra em estado de decrepitude 
                e senilidade. Entretanto, o espírito se ilumina e evolui, decretando 
                o inefável triunfo sobre a carne com o advento inevitável da morte. 
                
                
                Os conservacionistas – às vezes, muitos conservadores -, que me 
                perdoem, mas a Terra está em constante transformação natural ou 
                causada seus habitantes passageiros e irresponsáveis. O que não 
                precisamos é abreviar o seu estado terminal, com um suicídio coletivo 
                sem dignidade, harmonia e esperança. Estas também são lições fundamentais 
                do Fórum e para fóruns futuros. 
                
                Por isso, o FSM nos aponta caminhos de divino otimismo em relação 
                ao ser humano. Este, tomado pelo entusiasmo da consciência de 
                compartilhar com todos os seres vivos o seu papel de co-criador 
                da história do Universo. 
                
                Por isso, também, acreditamos que a inteligência sensível do humano, 
                nunca, em toda sua história civilizatória, foi tão solidária com 
                os princípios fundamentais da vida, que vão além de uma mera carta 
                de direitos humanos referendada pela ONU, e, muitas vezes, infelizmente, 
                impossível de ser respeitada. 
                
                Sim, nunca tanta vida que alimenta vidas esteve tão acessível 
                ao viver de todos. E eu falo, também, do campo das informações 
                de mídias inclusivas e libertárias, sejam elas místicas, filosóficas 
                ou científicas. 
                
                Embora, grande parte da massa esteja controlada por uma mídia 
                imediática e mergulhada numa miséria emblemática da condição humana, 
                esta miséria, porém, não vive só nas favelas de Munbai, no Rio 
                ou em Johannesburg. Os moradores dos guetos chiques são cada vez 
                mais prisioneiros de alta segurança, pois ainda não sabem que 
                abundância é ter e compartilhar. 
                
                Estas são as boas novas que nos trazem mais fé do que crenças 
                neste quinto Fórum. 
                
                A beleza da diversidade: 
                
                Sim, fiquei alegre e encantado no meio do porto, de tanta diversidade 
                em festa, quando visitei a barraca no setor de Arte e Criação 
                que abrigava as super organizadas associações internacionais das 
                prostitutas. No Brasil, como no mundo, elas são muito atuantes 
                para conseguir não só a justa regulamentação de sua profissão, 
                mas também na prevenção da AIDS que as ameaça e amedronta. Para 
                a doença do século XX, encenam peças teatrais educativas como 
                “Cabaré Davida”, ou publicações dedicadas ao tema que são além 
                de bem feitas, diretas e eficazes. E pasmem, seu jornal, “Beijo 
                da Rua”, já na quinta edição - segundo depoimento de uma bancária 
                atuante -, é mais bem editado e com mais conteúdo jornalístico 
                do que o periódico do Sindicato Nacional dos Bancários.
                
                Elas dizem: “Nós que somos a Rede Brasileira das Prostitutas, 
                não temos, no caminho de nossos acertos, medo de errar!”, e ainda, 
                “As mulheres boas vão para o céu, as mulheres más vão para qualquer 
                lugar”. Isto está em destaque num dos folders em que contam sua 
                história nascida no Iº Encontro Nacional das Prostitutas em l987 
                no Rio de Janeiro, e com outras atuações em fóruns internacionais. 
                Formando a Rede Brasileira das Prostitutas, defendem os mesmos 
                direitos civis de saúde e liberdade que qualquer um que se preze 
                humano e digno, deseja para seu fórum íntimo. Bravo! 
                
                Sim, estamos finalmente derrubando fronteiras não só geopolíticas, 
                mas também, preconceituais. E isto não está à acontecer desde 
                a queda do Muro de Berlim. Estamos erguendo em meio a globalização, 
                uma universal e livre maneira de digerir as diferenças e gerir 
                o Mundo pelo imagético ilimitado da criação. Isto, também acontece 
                através da virtualidade sem muros da internet, e, principalmente 
                pela conspiração silenciosa do querer uma educação escolar e universitária 
                mais libertária e humanista que precisa ainda contagiar o sistema 
                educacional. Ao formar crianças e jovens, os educadores devem 
                ter na mente e na alma, que estão educando a percepção e a sensibilidade 
                dos que vão enfrentar com criatividade o desafio do futuro. 
                
                Sim, um virtuoso mundo de novos ideais se ergue sólido e sem fronteiras 
                como sonhou Lennon em “Imagine”. Um mundo sem barreiras para o 
                imaginário de poéticos e políticos, cientistas e místicos, afinal, 
                todos são os mágicos da Terra, e enfim, unificados em suas pluralidades. 
                
                
                Sim, tinha também no Fórum um gostinho escorrendo pelos lábios 
                da memória, que começou a ter sabor de mudanças na década de 60 
                com o maio de Paris; com os festivais de rock nos campus da Europa 
                e da América do Norte ou nas passeatas pelas liberdades culturais 
                e políticas na América do Sul. 
                
                Estávamos em Porto Alegre, refazendo um velho caminho de lutas 
                e sonhos advindos de outras e da minha própria geração. Agora, 
                somamos a tudo isto - depois até de chegarmos ao poder -, a experiência 
                da tolerância e da compaixão exercitada na metade do século XX 
                pelo santo-político e pelo político-santo, o radicalíssimo Mahatma 
                Gandhi. Ele agiu de forma revolucionária pela libertação de seu 
                povo e dos povos do Mundo, em ações de não-violência, ainda não 
                compreendidas em sua totalidade nem pela militância radical da 
                mística que também faz a importância social do MST. Seria muito 
                útil que na sua recém fundada Universidade Florestan Fernandes 
                – um maravilhoso nome para uma justa homenagem -, pudessem os 
                estudantes, refletirem sobre os princípios gandhianos que configuram 
                anseios pacíficos de descolonizar territórios de mente e de espaço. 
                E neles, deixar fluir gestos mais pacíficos de reformar o agrário 
                e o egrégio. 
                
                O que aprendemos: 
                
                Que lições práticas e visionárias incorporamos no e do FSM nesta 
                e das suas outras quatro edições? 
                
                Benny S. J. da “Organização Plantation Setor Social Fórum” do 
                Sri Lanka diz que: “A voz das pessoas oprimidas pelo capitalismo 
                foi ouvida”; Paolo Giliardi da “Política Trotskista e Militância 
                Sindical” da Suíça: “O Fórum provou que existe resistência, que 
                não há um consenso em torno do neoliberalismo”; Abenor Alfaro 
                que trabalha com índios produtores de coca na Bolívia: “Comprovamos 
                que os problemas em vários países são os mesmos e que só a unidade 
                entre os povos pode resolvê-los”; Jose Luiz Uzcategui do “Comitê 
                Internacional Revolucionário Bolivariano” da Venezuela: “Avançamos 
                no aprofundamento dos processos revolucionários”; Saad Lujber 
                do “Movimento Revolucionário da Líbia”: “Há um consenso de que 
                a verdadeira democracia não existe, e é preciso lutar por ela”; 
                Isabel Pirajibe do “Movimento Nacional de Luta pela Moradia”: 
                “Houve trabalhos bons que foram ofuscados”; José Saramago, escritor 
                português: “Ou os que se revoltam contra a supremacia dos poderosos 
                aceitam o contraditório, a auto-crítica e pluralismo de idéias, 
                ou continuarão celebrando a si próprios, mas sempre inertes e 
                a reboque”. 
                
                Luiz Inácio da Silva, nosso presidente, herói em outros Fóruns, 
                aprendeu neste a conviver também com as vaias, as dezenas que 
                ganhou de presente do novo partido de esquerda. A Globo ampliou-as 
                para milhares. A elas, as vaias, respondeu o presidente com um 
                bom humor que deveria ilustrar qualquer estadista, chamando-as 
                de uma “harmonia gostosa” que já estava acostumado desde os tempos 
                sindicais. E fez um discurso realista, muito coerente com os sentimentos 
                do Fórum cuja organicidade da dialética nos espaços temáticos, 
                foi uma das melhores qualidades a serem seguidas em outras edições 
                internacionais. 
                
                Hugo Chávez, presidente da Venezuela, personagem que mantemos 
                entre a admiração dos que sofrem sobre pressão externa, e a desconfiança 
                dos que preferem agradar a esquerda radical com seu discurso populista, 
                estava no Fórum com sua comitiva exagerada de 400 pessoas. Soltou 
                para a imprensa que o aplaudiu, os cachorros , principalmente 
                contra o big brodher americano de quem pretende subverter a ordem, 
                mas cujo poder não difere quase nada dos ditadores que tanto admira. 
                Chávez que corre o perigo de se transformar em caricatura política 
                latino-americana de militar revolucionário, com um diálogo diplomático 
                de difícil identidade até com o governo brasileiro, saiu como 
                um herói dos jovens e militantes desavisados que lotaram o ginásio 
                de esportes Gigantinho Resta o questionamento se seu discurso 
                feroz contra os EUA, destoa ou não, das proposta fundamentais 
                do FSM. 
                
                Por tudo isto, também, não fiquei encantado, mas sim indignado 
                com a situação dos refugiados na África, no Brasil e na França. 
                A situação dos refugiados na França como em outros países está 
                denunciada pela estética questionadora das instalações e fotografias 
                contundentes da artista brasileira Marie Ange Bordas que as chamou 
                de “Deslocamentos”. 
                
                Marie Ange conviveu intensamente com refugiados de várias nacionalidades 
                e criou com eles uma obra interativa e incômoda no Museu de Arte 
                Contemporânea. O museu instalado nos armazéns - onde em parte 
                do Fórum acontecia os encontros de Arte e Criação -, abrigava 
                com a exposição de Marie Ange muitos questionamentos sobre nosso 
                papel de estar no Mundo e não nos envolvermos ativamente com ele. 
                Por isso a ela, Marie, cabe o nome que cunhamos em 1992 por ocasião 
                de nossas atuações na ECO-92: artivista. A passividade não cabia 
                junto a sua instalação onde uma frase do refugiado na França, 
                L. Neto – vindo de Angola -, se torna inesquecível: “Quando você 
                está esperando, só existe, por que vê os outros vivendo”. 
                
                O Movimento ArteSolidária:
                
                Neste viés dos armazéns, onde a arte e a criação se misturavam 
                a conversas sobre políticas de paz e articulações de sobrevivência 
                com nomes como Eduardo Galeano ou Frei Betto, Marie Ange habitou 
                seus queridos refugiados no exílio de uma pátria, e muito mais, 
                de si mesmos. Neste mesmo espaço de convívio e confronto com múltiplas 
                realidades planetárias, inserimos o Movimento ArteSolidária surgido 
                durante o Fórum Mundial de Cultura em São Paulo em 2004 por iniciativa 
                de doze parceiros interculturais. 
                
                O Movimento ArteSolidária, uma rede para a conexão de quem à faz 
                no país, participou também de encontros temáticos como “O reencantamento 
                do Mundo, o artista e as responsabilidades humanas”, e, da I Conferência 
                de Arte-Cidadania lotada dos que trabalhavam com arte na educação 
                e que preparavam o Fórum Nacional de Arte e Cidadania para 2005. 
                
                
                Em todos estes encontros houve uma intensa troca de experiências 
                já vivenciadas de arte solidária com interatividade cultural de 
                um público que era não só criativo e poético, mas também ético 
                em suas atitudes reivindicatórias pela busca da democratização 
                dos espaços culturais. A tônica era sempre de torná-los mais acessíveis 
                e inclusivos com depoimentos e propostas de ações concretas e 
                inspiradoras vindas de seus estados e países.
                
                Sim, fiquei muito encantado com o cortejo musical e espontâneo 
                dos jovens do Acampamento Intercontinental da Juventude que ao 
                visitarem e revirarem o lixo da cidade, criaram dos restos, instrumentos 
                para um batuque que conseguiu empolgar a muitos. Formaram uma 
                procissão bizarra e elétrica com uma alegria e leveza que me levou 
                às lágrimas. 
                
                O outro mundo do impossível:
                
                Nomes notáveis como Frei Betto, Emir Nader, Leonardo Boff, Tariq 
                Ali e Adolfo Esquivel entre outros, lançaram ao término do FSM, 
                o “Manifesto de Porto Alegre” com 12 propostas fundamentais, pedindo 
                a urgência prática de suas reivindicações pela política mundial 
                e pelos movimentos civis. Três importantes pontos: “Proibir todo 
                tipo de propriedade sobre conhecimento e seres vivos (tanto humanos 
                quantos animais e vegetais), do mesmo modo que qualquer privatização 
                dos bens comuns da humanidade, em particular a água”; “Garantir 
                o direito à soberania alimentícia de cada país mediante a promoção 
                da agricultura familiar” e “Reformar e democratizar em profundidade 
                as organizações internacionais, entre elas a ONU. Em caso de persistirem 
                as violações da legalidade internacional por parte do EUA, transferir 
                a sede da ONU de Nova York para outro país”. 
                
                Sim, o lema do FSM “Um outro mundo é possível” no impossível mundo 
                globalizado, nos dá a lição de que onde quer que ele aconteça, 
                em 2006 entre a Venezuela, o Brasil e outros países, na África 
                em 2007, ou ainda como aconteceu na Índia em 2004, será sempre 
                muito importante ao chamar a atenção para um país ou um continente, 
                ao jogar um foco de luz em zonas de perigos ambientais e humanos. 
                
                
                Sim, porque a poluição humana é um dos mais graves problemas do 
                planeta, e ela está à espera não só de resoluções políticas e 
                econômicas, mas de soluções práticas e criativas de toda a sociedade. 
                
                
                Por isso, com todos os erros e acertos, as ong’s são fundamentais 
                para a evolução deste processo de soluções políticas compartilhadas 
                e democráticas na construção de uma sociedade civíl menos passiva 
                e mais humanística. 
                
                Não dá mais para ser displicente com o mundo ao redor, desde a 
                atitude de não deixar a torneira aberta por muito tempo nas necessidades 
                domésticas ou por injustas causas nos fazeres industriais. A solidariedade 
                serve para os que vivem da pesca e também, para os que são por 
                estes pescados. O alimento saudável é para todos, conceito importante 
                que o Fome Zero ainda não sacou. E a água, é mais que um bem precioso 
                e primordial. 
                
                Há também que se exercitar com discernimento e clareza, até chegar 
                a uma tolerância e compaixão em que possamos exercitar a experiência 
                de nos defrontarmos com um irmão a te apontar uma arma e te pedir 
                o que você pensa que é só teu. Ele está te pedindo mesmo sem o 
                teu querer, o desapego dos bens que a traça rói e que a terra 
                há de comer. Nestes atos, as sabedorias búdicas e crísticas se 
                mostram mais filosóficas do que religiosas. Isto também, várias 
                pessoas experenciaram durante o Fórum ao serem assaltadas como 
                minha amiga Eveli Przepiorka. Artista e alquimista que nos facilitava 
                em sua vivência, a respeitar e lidar melhor com a matéria, Eveli 
                compreendeu muito bem no assalto a seu carro, a lição não só do 
                desapego, ela precisou saber também o significado profundo do 
                evento. E, perdoando-se, perduou também o outro. 
                
                O FSM é a prova dos nove de que a felicidade que os indígenas 
                descobriram nos paraísos das Américas – segundo Oswald de Andrade 
                – antes dos portugueses e espanhóis invadirem suas nações -, é 
                finalmente possível. Isto é o que diziam milhares de vozes na 
                mesma voz em um porto alegre. 
                
                E que se o sonho não acabou – mesmo porque ele nos é eterno -, 
                então, que se viva a experiência de risco de utilizarmos o tubo 
                de ensaio da utopia que nos oferece sem medos as provocações oportunas 
                do FSM. 
                
                Ele, o Fórum, nos dá um recado radical e essencial igual ao que 
                nos soa da voz mágica e lúcida do xamã mexicano Miguel Ruiz: “Você 
                é o sonho e o sonhador”. 
                
                Afinal, no meio de tantos nãos à Vida, eu digo muitos sims iguais 
                ao contido no inspirado verso de João Cabral de Melo nos falando 
                num auto de natal nordestino sobre a morte e a vida severina: 
                “É tão belo como um sim / numa sala negativa”. 
                
                
                Bené Fonteles
                Coordenador do Movimento Artistas pela Natureza 
                e um dos animadores do Movimento ArteSolidária 
                
                
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