Carmen 
                - Sedução Cigana
                (por Antonio Júnior)
                
                Nunca houve uma mulher na literatura 
                como Carmen. Nem a sanguinária Lady Macbeth, a insatisfeita Emma 
                Bovary, a alegre zíngara Esmeralda, a apaixonada Anna Karenina 
                ou a ambígua Capitu, entre outras ilustres celebridades retratadas 
                em dezenas de clássicos, superam seu magnetismo enigmático e erótico. 
                Das páginas do francês Prosper Mérimée ela saltou para a ópera, 
                o balé flamenco, as artes plásticas, a poesia e mais de meia centena 
                de adaptaçoes cinematográficas. A beleza selvagem da cigana andaluza 
                inspirou atrizes, divas eruditas e bailarinas lendárias como Pola 
                Negri, Dolores del Rio, Rita Hayworth, Sarita Montiel, Viviane 
                Romance, Dorothy Dandridge, Maria Callas, Teresa Berganza, Victoria 
                de los Ángeles, Alicia Alonso e Maia Plisetskaya. Símbolo da mulher 
                indomável e possuídora de espírito rebelde e valente, que cultua 
                a liberdade pessoal em uma sociedade em que o dinheiro e e posiçao 
                social parecem ser as únicas coisas importantes, Carmen representa 
                o mito da mulher fatal por excelência, uma nova Pandora, dotada, 
                de abundantes dons espirituais e de impressionante sensualidade, 
                porém mentirosa e perversa, cruel e vingativa, e sem deixar de 
                ser carismática, alegre e generosa. Gozando de notoriedade, pode 
                ser comparada com outras fêmeas voluptuosas, que aparece em todas 
                as culturas conhecidas: Salomé, Judith, Lilith, Kitsune sao exemplos 
                que ilustram a homenagem que a tradiçao popular faz a este personagem 
                sedutor. No relato de Don José, é tratada mais que com palavras 
                de enamorado, com as de um enfeitiçado: ela o seduz e ele nao 
                pode viver sem sua presença; repete várias vezes que ela é o “diabo”, 
                confirmado por Carmen. O leitor pouco a pouco conhece a condiçao 
                da protagonista de prostituta, ladra, instigadora ao crime, maléfica, 
                etc., e, mesmo assim, como José, se sente atraído por ela, por 
                sua força nascida do eterno feminino, do encanto do obscuro:
                
                “Era una belleza extraña y salvaje, un rostro que al pronto 
                extrañaba, pero no se podía olvidar. Sobre todo, los ojos tenían 
                una expresión voluptuosa y feroz a la vez que no he encontrado 
                después en ninguna mirada humana. Ojo de gitano, ojo de lobo” 
                
                
                MÉRIMÉE: UMA VOCAÇAO ESPANHOLA
                
                O criador de Carmen, o historiador e erudito Prosper Mérimée (1803-1870), 
                nasceu em Paris, pertencendo a geraçao romântica e tendo em Stendhal 
                o seu melhor amigo, unidos por afinidades como o ceticismo religioso, 
                a sensualidade e também a atraçao por Espanha. Aos 21 anos, publica 
                em um jornal quatro artigos sobre a arte dramática espanhola e 
                em 1830 faz sua primeira viagem ao país que tanto o impressiona, 
                admirando a Andaluzia, a formosura das mulheres e de outras muitas 
                coisas, como o vinho de Jerez, as touradas ou a obra de Cervantes. 
                Faz amizade com Doña Manuela, condessa de Montijo, e suas filhas, 
                Paca (futura duquesa de Alba) e Eugenia (futura imperatriz dos 
                franceses). A condessa, confidente de toda a vida, foi de valiosa 
                ajuda, sobretudo para a preparaçao de algumas obras de Mérimée, 
                facilitando pesquisas e estadia, em seus palácios de Carabanchel 
                e Madri, e recomendando-o as suas amizades. Ela contou-lhe casos 
                que impressionaram o escritor como o do oficial que matou a sua 
                amante, uma bailarina, por ciúmes, ou do problema familiar criado 
                por seu cunhado, que se apaixonou por uma cigana. Ambas notícias 
                constituiram, fundidas, o embriao de “Carmen”, escrita mais de 
                uma década depois. Em 1840 publica “Colomba”, inspirada novela 
                sobre uma vingança familiar com outro personagem feminino cruel 
                da ampla galeria misógina do autor. Porém Espanha nao se afasta 
                do seu pensamento: faz uma segunda viagem ao país, dez anos depois 
                da primeira. Em 1844 torna-se membro da Academia Francesa, e no 
                ano seguinte publica essa excepcional novela, “Carmen”, na Revue 
                des Deux Mondes. Numa carta diz que escreveu-a em oito dias, depois 
                de imaginá-la durante quinze anos. A obra passou quase despecebida, 
                sem grande buxixo, numa época em que a França já estava acostumada 
                a receber bailarinos flamencos e a ler criaçoes tendo o fértil 
                país vizinho como pano de fundo - no mesmo ano da publicaçao desta 
                novela, surgiu uma nova traduçao do “Quixote” e Théophile Gauthier 
                lançou “Poésies Nouvelles”, que incluem as intituladas “Espanha”. 
                Prosper Mérimée faz a sétima e última viagem a Espanha em 1863, 
                sete anos antes de morrer. Mesmo com graves problemas de saúde, 
                nao deixa de escrever, e uma das suas obras-primas pertence ao 
                gênero fantástico, escrita no final de sua intensa vida, “Lokis” 
                (1866), sobre um homem-urso. No ano seguinte a sua morte, a Comuna 
                revolucionária queima sua casa de Paris, e no incêndio desaparecem 
                o arquivo e documentos valiosos do escritor. Embora com uma média 
                de duas ediçoes anuais desde o lançamento, “Carmen” só seria um 
                fenömeno popular ao pegar carona no êxito internacional da ópera 
                de Bizet, uma adaptaçao da novela estreiada em Paris no ano de 
                1875. 
                
                A ORIGEM DE CARMEN
                
                Em “Cartas de Espanha”, do próprio Mérimée, ele revela que o nome 
                da protagonista surgiu de uma jovem, Carmencita, a que faz mençao 
                na quarta carta (“As Bruxas Espanholas”), que lhe serviu comida 
                em uma venda de Murviedro (antigo nome de Sagunto, em Valência); 
                era cigana, prostituta, jogadora de cartas de adivinhaçao e de 
                “rara beleza”. Nascia Carmen, pomba-gira de carne-e-osso vivendo 
                a temática tradicional do amor fatal, que originou obras literárias 
                tao famosas e excepcionais como “Romeu e Julieta” (1595) ou “Manon 
                Lescaut” (1731), e renovando o mito da mulher nefasta. Quando 
                ela é apresentada no capítulo II, há uma clara alusao ao mito 
                de Vênus, deusa do amor, polígama, saindo das águas:
                “Una tarde, a la hora en que no se ve ya nada, estaba yo 
                fumando apoyado en el pretil del paseo, cuando una mujer coronó 
                la escalera que conduce al río y vino a sentarse cerca de mí. 
                Tenía en el pelo un gran ramo de jazmín, cuyos pétalos exhalan 
                de noche un olor embriagador. Estaba vestida con sencillez, quizá 
                pobremente, toda de negro, como la mayor parte de las modistillas 
                al anochecer. Las mujeres de buen tono no van de negro más que 
                por la mañana; por la noche, se visten a la francesa. Al llegar 
                cerca de mí, la bañista dejó deslizarse sobre los hombros la mantilla 
                que le cubría la cabeza, y en la obscura claridad que cae de las 
                estrellas me parcaté de que era menuda, joven, bien proporcionada, 
                y que tenía los ojos muy grandes”
                
                Carmen significa “fórmula mágica” no latim; seu significado medieval, 
                poema; a transformaçao francesa é “charme”, agrado, encanto. Tudo 
                isso pode ser aplicado simbologicamente ao personagem, que mesmo 
                tao importante, complexo, e dando título a obra, em nenhum momento 
                o autor revela os seus íntimos sentimentos, nem os seus pensamentos, 
                nem as suas convicçoes.
                
                ESTRUTURA NARRATIVA
                
                A história se situa em terras de Andaluzia, resultado das vivências 
                da primeira viagem de Mérimée. O estilo é sóbrio e sintético, 
                longe do melodrama, justamente ao contrário da ópera que triunfou 
                pela expressividade e ardor da música de Bizet (como nao se emocionar 
                com “L`amour est un Oiseau Rebelle”?), porém peca no libreto simplório 
                de Ludovic Halévy e Henry Meilhac, que se empenha em converter 
                a Carmen em um protótipo amável, convencionalmente rebelde, vítima 
                de algumas superstiçoes, porém definitivamente uma mulher de “bom 
                coraçao”. Seguindo outra idéia, Mérimée evita todo o tempo prolongados 
                derramamentos sentimentais. Nos dois primeiros capítulos de “Carmen” 
                o escritor francês usa o aparentemente autobiográfico, corriqueiro 
                na literatura de viagens; o narrador se apresenta como autor da 
                narraçao, o viajante-arqueólogo figurando nos feitos contados, 
                o que dá um tom de autenticidade. A escrita é rápida, algo seca, 
                dominada por frases curtas e com diálogos sinceros e nervosos. 
                Este estilo frio deu lugar a momentos de formidável emoçao. A 
                obra, marcada por horrores, passa uma cumplicidade que beira a 
                compaixao. As cores sao importantes para o argumento, e algumas 
                delas se repetem muito: Carmen é o vermelho e o negro, José o 
                amarelo. Traduzida ao espanhol em 1891, quarenta e seis anos após 
                a publicaçao, em um século em que o coletivo social ainda aceitava 
                a opressao como um benéficio, a novela foi mal recebida pelos 
                espanhóis, considerada insultante ao tratar de seres marginalizados, 
                o que nao é verdade, os costumes relatados sao fiéis, frutos de 
                rigorosa pesquisa, observaçao e conhecimento. Futuramente teria 
                o valor reconhecido e Mérimée, como em tantos outros países, seria 
                lembrado principalmente por esta criaçao primorosa. 
                
                CONTEÚDO TRÁGICO
                
                A curta novela é uma história de amor e de sangue, narrando a 
                confissao de um condenado à morte, Don José, um ex-sargento que 
                se torna assassino, fugitivo, contrabandista e bandido temido, 
                tudo pelo amor de uma mulher frívola e inconstante. Ele conta 
                como Carmen foi responsável por sua desgraça, arrastando-o ao 
                mal como uma autoridade diabólica. Sendo militar, desertou por 
                ela e finalmente a matou possuído por ciúmes. O autor, Prosper 
                Mérimée, finge haver conhecido ao bandido e a cigana, sua amante 
                casada com um rude canalha. Novela de paixao que produz mortes 
                e termina necessária, fatal e trágicamente na morte; de uma fatalidade 
                guiada pelo Destino, junto a elementos como o diabólico e a magia; 
                o contrabando como forma de contornar a pobreza, a conivência 
                dos poderosos com facínoras renegados e o poder dos toureiros, 
                autênticos ídolos que, pela sua arte e audácia, arrastam, atrás 
                de si, verdadeiras multidoes. Théophile Gauthier, Proust, Anatole 
                France, Gide e muitos outros escritores e críticos desenvolveram 
                idéias tendo o personagem desafiante como tema. Em “Poema del 
                Cante Jondo”, Federico García Lorca fala de uma cigana velha, 
                porém ainda perigosa: 
                
                “La Carmen está bailando / por las calles de Sevilla. / Tiene 
                blancos los cabellos / y brillantes las pupilas. / ¡Niñas, / corred 
                las cortinas! (...)”. 
                
                No nosso Brasil, Glória Perez e a danada poeta Leila Miccolis 
                renovaram o mito em uma telenovela famosa de 1987, da Manchete, 
                protagonizada por uma Lucélia Santos em estado de graça; o genial 
                e polêmico Gerald Thomas criou a sua própria mulher fatal em “Carmen 
                com Filtro”, de 1986, com outra atriz admirável, Bete Coelho. 
                Gustave Doré e Pablo Picasso (38 gravuras publicadas em 1949 em 
                uma ediçao de 320 exemplares) ilustraram as aventuras da bela 
                cigana. Carmen, mulher indomável e infiel, que usa os seus atributos 
                para subjugar os machos que atravessam no seu caminho, se mantem 
                fiel a sua raça e a seu destino, dona do seu corpo, motivo da 
                sua própria morte às maos do homem que tem por ela uma paixao 
                obsessiva e exclusiva. Este, o vasco José Lizarrabengoa, uma das 
                vítimas de sua seduçao, um escravo do desejo, que tem todas as 
                facetas de um apaixonado patético, é também uma criaçao vibrante, 
                forte, que enamora o leitor.
                
                PROJEÇAO DO MITO
                
                Em 1921, a mítica atriz catala Margarita Xirgu (que montaria com 
                êxito nos anos seguintes obras teatrais de Lorca), estréia em 
                Sevilha um drama espanhol inspirado fielmente em “Carmen”. O inconformista 
                Peter Brook monta a versao operística em 1981, numa densa concepçao 
                intimista intitulada “A Tragédia de Carmen”. Carlos Saura e Antonio 
                Gades, nos anos 80, apresentam com sucesso em vários países a 
                Carmen flamenca, ou seja, canto e dança ciganos. O espetáculo 
                geraria um dos melhores filmes de Saura. A novela, usada em mais 
                de cinquenta adaptaçoes cinematográficas, algumas delas com grande 
                sucesso de crítica e de público, esteve no imaginário de cineastas 
                de prestígio: Cecil B. DeMille (“Carmen”, 1915), Ernest Lubitsch 
                (“Amor Cigano”, 1918), Jacques Feyder (“Carmen”, 1926), Raoul 
                Walsh (“Os Amores de Carmen”, 1927), Charles Vidor (“Os Amores 
                de Carmen”, 1948), Otto Preminger (“Carmen Jones”, 1956), Jean-Luc 
                Godard (“Prenome Carmen”, 1983), Francesco Rosi (“Carmen”, 1984), 
                etc. A mais recente “Carmen” das telas, de 2003, do espanhol Vicente 
                Aranda, protagonizada por Paz Vega e Leonardo Sbaraghlia, é uma 
                das mais fiéis e cativantes em seu refinado erotismo e em cenas 
                do cotidiano de um Goya. Obsecado pelo livro, escrevi “Las Cosas 
                de Gitano Duran Poco”, versao livre, transportada aos tempos atuais, 
                com imigrantes marroquinos morrendo no Estreito de Gibraltar e 
                sul-americanos lutando na Europa por melhores oportunidades. A 
                minha Carmen é um pequeno marginal, o objeto fetiche José Navarro, 
                e a própria Pomba-Gira; José é Torquato Lubiao, um músico sem 
                destino e sem dinheiro. O cenário continua sendo a Andaluzia plena 
                de contrastes e onde a presença dos ciganos marca o caráter do 
                seu povo, sempre excessivo na expressao dos sentimentos. É o primeiro 
                tratamento homossexual de “Carmen” que conheço (“Carmen, Carmen”, 
                de Antonio Gala, 1976, nao chega a tanto). Espero nao envergonhar 
                o original.
                
                Grande obra literária, e a nossa Carmencita uma explosao de 
                sensaçoes, nao há como nao se sentir atraído por uma mulher que 
                preferiu morrer a deixar de ser livre e dona do seu desejo e da 
                sua vontade. Uma temática bem atual. Nao é a toa que Nietzsche 
                escreveu sobre “Carmen”: “Para mim esta obra merece uma viagem 
                a Espanha”. Com certeza, meu caro leitor. 
                
                OBRAS CONSULTADAS
                
                Prosa / Poesia
                
                GALA, Antonio, “Carmen, Carmen”, 1976; 
                GAUTHIER, Théophile, “Poemas Completos”; 
                GAUTHIER, Théophile, “Voyage en Espagne”; 
                JIMÉNEZ, Luis López e ESTEVE, Luis-Eduardo López, “Merimée: Una 
                Vocación Española (Resumen Biográfico), 1989;
                LORCA, Federíco García,“Poema del Cante Jondo”, 1921; 
                LOUYS, Pierre, “La Femme et la Pantin”, 1898; 
                MAINGUENEAU, Dominique, “Carmen. Les Recines d’un Mythe”, 1984; 
                
                MERIMÉE, Prosper, “Viagem a Espanha”; 
                MERIMÉE, Prosper, “Carmen”, 1845;
                STEINER, George, prefácio para “Carmen y Otros Cuentos”, 1981;
                
                Música 
                
                BIZET. George, MEILHAC. H. e HALÉVY, L., “Carmen”, 1875, cantada 
                por Maria Callas, Jessie Norman, Teresa Berganza e Victoria de 
                los Ángeles;
                QUINTERO, LEÒN e QUIROGA, “Carmen de España”, 1953, cantada por 
                Carmen Sevilla;
                
                Cinema 
                
                ARANDA, Vicente,“Carmen”, 2003, com Paz Vega;
                BUÑUEL, Luis, “Esse Obscuro Objeto do Desejo”, 1977, com Angela 
                Molina e Carole Bouquet;
                CHRISTIAN-JACQUE, “Carmen”, 1942, com Viviane Romance;
                DE MILLE, Cecil B., “Carmen”, 1915, com Geraldine Farrar;
                DEMICHL, “Carmen”, 1959, com Sarita Montiel;
                FEYDER, Jacques, “Carmen”, 1926, com Raquel Meller;
                GODARD, Jean-Luc, “Prenome Carmen”, 1983;
                LUBITSCH, Ernest, “Amor Cigano”, 1918, com Pola Negri;
                PREMINGER, Otto, “Carmen Jones”, 1954, com Dorothy Dandridge,
                ROSI, Francesco, “Carmen”, 1984, com Julie Migenes-Johnson;
                SAURA, Carlos, “Carmen”, 1983, com Laura del Sol;
                VIDOR, Charles, “Os Amores de Carmen”, 1948, com Rita Hayworth; 
                
                
                Tevê
                
                PEREZ, Gloria e MICCOLIS, Leila, “Carmen”, 1987, com Lucélia 
                Santos; 
                
                Artes Plásticas 
                
                BRION, ilustraçoes, 1877;
                DORÉ, Gustave, ilustraçoes para “L`Espagne”;
                MERIMÉE, Prosper, “Retrato de Cigana”, aquarela;
                PICASSO, Pablo, ilustraçoes, 1949 e 1967; 
                
                Teatro 
                
                GARCIA, Nicole, leitura de “Carmen”, em cassete, 1987;
                THOMAS, Gerald, “Carmen com Filtro”, 1986; 
                
                
                
                
              Voltar