CORDEL 
                - LEITORES E OUVINTES
                (por Magda Soares)
              
               Texto do livro
                
                APRESENTAÇÃO
              O pesquisador que, 
                na área da história da leitura, busca encontrar o leitor, não 
                o autor ou o texto, deve transpor consideráveis obstáculos, porque 
                o tempo esconde e dificulta muito mais a recuperação daquele que 
                destes. Ana Maria Galvão, na pesquisa que deu origem à sua tese 
                de Doutorado, em que capta e analisa leitores de literatura de 
                cordel nas décadas de 30, 40 e 50 do século XX, em Pernambuco, 
                agora apresentada neste livro, atreveu-se a enfrentar esses obstáculos, 
                e venceu-os com admirável sucesso. Tendo tido o privilégio de 
                ser a orientadora de Ana Maria em seu processo de doutoramento, 
                gostaria de apontar alguns dos obstáculos que a desafiaram e como 
                ela soube responder a eles com admirável brilhantismo.
                
                Um primeiro obstáculo que é preciso enfrentar, em pesquisas históricas 
                que buscam o leitor, é a dificuldade de captar, em momentos temporalmente 
                distantes do pesquisador, as formas de acesso ao impresso, os 
                usos que eram feitos dele, os contextos e as situações de leitura, 
                os modos de ler, as reações aos textos. Obstáculo que chega a 
                levar alguns historiadores da leitura a julgar que, se é possível, 
                ainda que difícil, construir uma história externa da leitura, 
                pela identificação de quem lia e de o quê se lia, em épocas passadas, 
                é quase impossível construir uma história interna da leitura, 
                porque isso supõe a recuperação de processos, a apreensão de como 
                se lia. Robert Darnton, em sua pesquisa sobre os best-sellers 
                proibidos, na França do século XVII, declara que o problema que 
                enfrentara não tinha sido identificar os livros ou os autores, 
                mas a leitura, ou os modos de ler: "A dificuldade está na leitura 
                em si. Mal percebemos o que acontece diante de nós, quanto mais 
                o que ocorreu dois séculos atrás, quando os leitores habitavam 
                um universo mental diferente." Embora Ana Maria não tenha ido 
                tão longe no passado, pois foi em busca de um leitor não de dois 
                séculos atrás, mas de cinqüenta, sessenta, setenta anos atrás, 
                nem por isso foi menor o obstáculo que enfrentou: afinal, dois 
                séculos atrás ou setenta anos atrás são sempre tempos e universos 
                mentais que o passado esconde. Tempos e universos que Ana Maria 
                soube muito bem recuperar, em leitores de cordel dos anos 30, 
                40, 50 do século passado, e soube tornar presentes aos leitores 
                que hoje têm este livro nas mãos.
                
                Um segundo obstáculo que Ana Maria se dispôs a enfrentar, e venceu 
                com sucesso, foi o desafio de buscar não um leitor "convencional", 
                aquele pertencente ao universo letrado, o leitor dos impressos 
                socialmente valorizados: o leitor de livros, de jornais, de revistas. 
                Não; Ana Maria foi buscar o leitor de um impresso, o cordel, considerado 
                pelas camadas letradas, na época pesquisada, quase como efêmero 
                e até descartável, e de circulação restrita a grupos sociais pouco 
                letrados: a analfabetos ou semi-alfabetizados, a homens, mulheres 
                e crianças pertencentes a frações das camadas populares. Flagrando 
                minuciosamente indícios aqui e ali, por caminhos vários, a pesquisadora 
                vai descobrindo as formas de acesso desses leitores à literatura 
                de cordel, as situações em que com ela interagiam, o papel que 
                atribuíam à sua leitura, os significados que construíam dos textos, 
                dando assim uma contribuição fundamental a uma história da leitura 
                das camadas populares no Brasil. 
                
                Um terceiro obstáculo que Ana Maria enfrentou e venceu magnificamente, 
                talvez o mais importante, porque diz respeito a uma característica 
                essencial do leitor e da literatura que tomou como objeto de estudo, 
                foi superar a dificuldade de captar um modo de ler que é também 
                e simultaneamente um modo de ouvir, ou, vice-versa, captar um 
                modo de ouvir que é também e simultaneamente um modo de ler. Tomando 
                como objeto de sua pesquisa uma literatura destinada à audição, 
                tanto quanto, ou talvez mais que, à leitura, Ana Maria estuda 
                um leitor-ouvinte, ou um ouvinte-leitor: indivíduos analfabetos 
                ou semi-alfabetizados que, entretanto, "lêem", e até aprendem 
                a ler por meio do cordel; indivíduos que, negando a característica 
                de não letrados que lhes era atribuída, envolvem-se em práticas 
                de leitura; indivíduos que praticam uma leitura mediada pela oralidade, 
                ou uma oralidade mediada pela escrita. A pesquisa consegue, assim, 
                vencer o difícil desafio, ainda tão raramente enfrentado entre 
                nós, de caracterizar esse tênue limiar entre oralidade e escrita, 
                e desmistificar a falsa dicotomia oralidade-escrita. 
                
                Não falo de outros obstáculos e desafios que Ana Maria enfrentou, 
                todos vencidos com extraordinárias habilidades de pesquisadora, 
                grande acuidade e sensibilidade. O resultado é esta contribuição 
                original e fundamental não só para os estudos sobre a literatura 
                de cordel, em que ela inova e renova, mas também para a história 
                da leitura e do leitor – uma pesquisa inegavelmente paradigmática 
                de como se pode, a despeito dos obstáculos e desafios que se interpõem 
                entre o pesquisador e a apreensão de processos que o tempo encobre, 
                reconstruir, sem que isso signifique reconstituir, leituras do 
                passado, modos de ler, formas de acesso ao escrito e de atribuição 
                de sentido a textos.
                
                
                
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